CARTA ABERTA À COMUNIDADE UNIVERSITÁRIA – UFES

IMPLICAÇÕES DOS CORTES ORÇAMENTÁRIOS NA PERMANÊNCIA ESTUDANTIL E NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR


À Comunidade Universitária da Ufes

 

Desejando encontrá-los bem e cumprimentando-os cordialmente, vimos, por este meio, apresentar alguns aspectos acerca do cenário que afeta a assistência estudantil na Ufes, em especial, aqueles que dizem respeito à concessão dos auxílios estudantis pecuniários, tão necessários para a permanência qualificada dos estudantes, que são o público da assistência estudantil na Ufes.

Os auxílios estudantis estabelecidos no âmbito do Programa de Assistência Estudantil da Universidade Federal do Espírito Santo (Proaes-Ufes) (vide aqui) são regidos pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES-MEC) (vide aqui) e concedidos aos estudantes mediante seleção e cadastro realizados por meio de Editais próprios publicados pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Cidadania da Ufes.

Os recursos financeiros para as despesas orçamentárias do PNAES são repassados pelo Governo Federal às instituições federais de ensino superior, devendo o Poder Executivo – conforme prevê o Art. 8.º do Decreto n.º 7.234, de 19 de julho de 2010, “[...] compatibilizar a quantidade de beneficiários com as dotações orçamentárias existentes, observados os limites estipulados na forma da legislação orçamentária e financeira vigente”. Para tanto, o Decreto estabelece que: “[...] Serão atendidos no âmbito do PNAES prioritariamente estudantes oriundos da rede pública de educação básica ou com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio” (vide aqui).

Diante do quadro epidemiológico e em consonância com o Ensino-Aprendizagem Remoto Temporário e Emergencial (Earte), os auxílios estudantis pecuniários a título de moradia, transporte, material de consumo e alimentação, executados pelo Programa de Assistência Estudantil da Ufes (Proaes-Ufes), foram convertidos no “Auxílio Permanência Emergencial”, por meio da Resolução Cun 35/2020 (vide aqui), o qual é destinado a proporcionar condições de permanência do estudante na universidade e evitar sua evasão, enquanto durar o Ensino-Aprendizagem Remoto Temporário e Emergencial (Earte) na Ufes.

No ano passado (2020), o PNAES completou uma década de existência. Ao longo dessa década, a Assistência Estudantil foi ocupando cada vez mais um papel estratégico no processo de democratização do acesso ao ensino superior brasileiro. Esse processo teve início em 2001, com a adoção da reserva de 50% das vagas, nas universidades estaduais do Rio de Janeiro, para estudantes egressos de escolas públicas, seguida pelo estabelecimento de reserva de 20% das vagas para negros (cotas), na Universidade de Brasília (UnB), em 2003; e na Ufes, em 2007, com a aprovação da Resolução Cepe n.º 33/2007, instituindo a adoção do sistema de inclusão social/cotas (vide aqui).

Esse processo de democratização do acesso ao ensino superior exige a complementariedade de duas ações estratégicas: i) a reserva de vagas; e ii) a assistência estudantil. A atual política de reserva de vagas (cotas), que está regulamentada na Lei n.º 12.711/2021 (vide aqui), objetiva reservar vagas nas universidades federais aos estudantes de escolas públicas, estudantes oriundos de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo, estudantes negros, estudantes indígenas e estudantes com deficiência. A assistência estudantil, conforme o Parágrafo único do Art. 4.º do Decreto n.º 7.234/2010, objetiva “[...] viabilizar a igualdade de oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho acadêmico e agir, preventivamente, nas situações de retenção e evasão decorrentes da insuficiência de condições financeiras” dos estudantes com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio.

Em boa medida, podemos assegurar que os resultados conjugados destas duas políticas – reserva de vagas e assistência estudantil –, que são responsáveis pela garantia do processo de democratização do acesso ao ensino superior, podem ser percebidos nos dados da V Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (Fonaprace). Essa Pesquisa aponta que: 26,6% dos estudantes pertencem a famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, que 26,9% dos estudantes pertencem a famílias com renda per capita mais de meio a 1 salário mínimo, e que que 16,6% dos estudantes pertencem a famílias com renda per capita mais de 1 a 1 e meio salário mínimo (vide aqui). Ou seja, 53,5% dos estudantes com renda de até um salário mínimo, e um total de 70,1% com renda de até um salário mínimo e meio.

Aqueles e aquelas que frequentaram alguma universidade pública até o fim dos anos 1990 poderão, empiricamente, confirmar que esse atual perfil de estudantes universitários é uma realidade recente no ensino superior brasileiro. Tal mudança de perfil tornou-se possível, principalmente, como já dito, mediante a adoção de políticas de reserva de vagas do ensino superior (cotas) e de políticas de assistência estudantil. Reserva de vagas (cotas) e assistência estudantil são duas políticas de natureza compensatória e/ou de reparação sócio histórica que visam reduzir as profundas e históricas desigualdades sociais brasileiras de viés étnico-racial, de regionalidade, de gênero, de sexualidade, de classe social e de capacitismo que estruturam a sociedade brasileira (vide aqui).

Nos parece importante registrar que 2017 (cujo orçamento foi encaminhado ao Congresso Nacional em 2016) foi o último ano em que o orçamento do PNAES foi suficiente para atender à totalidade dos estudantes cadastrados na Assistência Estudantil da Ufes. Desde então, essa problemática se agrava com um déficit crescente entre a dotação orçamentária disponível e a quantidade de estudantes a serem beneficiados no âmbito do PNAES. Essa descompatibilização orçamentária foi expressivamente agravada agora em 2021, com o corte de 18,3% nos recursos da assistência estudantil na Ufes (vide aqui).

Assim, repercutindo brevemente sobre a taxa de evolução da descompatibilização orçamentária do PNAES com a sua capacidade de atendimento aos estudantes que são o público da assistência estudantil, no âmbito da Ufes, e mantendo-se os mesmos valores financeiros e modalidades de auxílios pecuniários praticados em 2017, temos que: a capacidade orçamentária do PNAES para atendimento à assistência estudantil, em 2018, foi de 94%; no ano de 2019, foi de 88%, em 2020 foi de 81%; e agora, no ano de 2021, projetamos uma capacidade estimada de 67%. Isso significa que o atual corte orçamentário de 18,3% na assistência estudantil da Ufes, poderá ocasionar, agora em 2021, o não atendimento a cerca de 33% de estudantes pobres e/ou de baixa renda, ou seja, 1/3 dos estudantes em condições de vulnerabilidade socioeconômica.

Em curto prazo esses cortes e vetos orçamentários, que afetam os recursos da assistência estudantil em 2021, poderão ocasionar um aumento no índice de reprovação e de evasão de grande parte desses estudantes, uma vez que a assistência estudantil impacta positivamente seu rendimento acadêmico. E, por fim, a continuidade desse estrangulamento financeiro da assistência estudantil poderá constituir-se, em médio prazo, em uma forte ameaça à continuidade do processo de democratização do ensino superior brasileiro, uma vez que muitos estudantes pobres – diante das dificuldades materiais e econômicas para se manterem na universidade – poderão vivenciar processos de evasão em seus cursos.

No atual cenário epidemiológico, em especial, nos preocupam, de modo profundo, as condições de permanência dos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, pois, diante dos limites orçamentários impostos ao PNAES-MEC, por meio da atual Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021 (vide aqui), no momento, não dispomos de condições orçamentárias para: 1) conceder novos auxílios pecuniários para além do “Auxílio Permanência Emergencial” previsto na Resolução Cun 35/2020 (vide aqui); e 2) publicar novos Editais de Cadastro na Assistência Estudantil para os estudantes ingressantes no ano de 2021.

A problemática orçamentária aqui apresentada não é pontual, mas se trata de uma problemática que afeta o conjunto das 69 universidades federais brasileiras, como alerta o documento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) (vide aqui). De igual modo, os cortes não são específicos, esses afetam a totalidade de recursos de custeio e de capital, conforme manifestam a Nota dos Conselhos Superiores da Ufes (vide aqui) e a Administração Central da Ufes (vide aqui). Nesse horizonte de análise, s.m.j., cremos que somente os esforços institucionais podem não ser suficientes, assim, consideramos importante a mobilização da comunidade universitária e da sociedade brasileira – às quais nos somamos – em defesa da recomposição orçamentária pelos poderes Executivo Federal e Legislativo Federal.

Garantir que o Governo Federal e o Congresso Nacional estabeleçam a recomposição do orçamento do PNAES significa garantir um dos pilares do processo de democratização do ensino superior: a permanência qualificada dos estudantes economicamente pobres nas universidades brasileiras. Significa, fundamentalmente, garantir que ao projeto de Universidade pública, gratuita e de qualidade se articule, intrinsecamente, uma concepção de universidade plural, inclusiva e pluriétnica que garanta políticas compensatórias de reparações socioeconômicas, étnico-raciais e de acessibilidade.

Antes de despedirmos cordialmente, evocamos a memória de todos aqueles e todas aquelas que vieram muito antes de nós e nos permitiram chegar até aqui, para reafirmar nosso compromisso e disposição em defesa de uma universidade pública, gratuita, de qualidade socialmente referenciada, plural, inclusiva e pluriétnica!

 

Vitória – ES, 10 de junho de 2021.

 

 

Prof. Dr. Gustavo Henrique Araújo Forde

Pró-Reitor de Assuntos Estudantis e Cidadania

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